Nos últimos meses temos visto uma enorme escalada do conflito no Curdistão. O nível de conflito entre as forças revolucionárias e as potências colonialistas e imperialistas nunca foi tão alto.Vivemos um momento histórico num conflito que dura há já mais de 40 anos e por isso vemos uma resistência histórica a tomar lugar, quer nas montanhas livres do Curdistão, quer nas planícies livres de Rojava.
Pensar que a guerra em Rojava ficou em pausa após as últimas invasões em 2018 a Afrin e em 2019 a Serekaniye e Gire Spi é errado e perigoso. Pensar também que os ataques do estado fascista Turco às zonas sob controlo da guerrilha do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), quer seja no Curdistão do Norte quer do Sul, estão separados dos ataques levados a cabo contra Rojava é também uma ideia incorreta. Com este texto pretendemos dar uma breve atualização dos últimos desenvolvimentos na região, pois a revolução que está a ser construída aqui, o conflito contra o fascismo e o patriarcado neste lugar, tem de ser visto também como a nossa luta, uma luta que devemos também defender, pois é isso o internacionalismo.
Rojava e Shengal
Entre os dias 16 e 21 de Agosto, em apenas cinco dias, Rojava e a região de Shengal, território do povo Yazidi, foram alvo de 25 ataques de drones de guerra do regime de Erdogan. Estes ataques não tinham apenas alvos militares mas também, como tem sido uma prática comum do estado Turco, a população civil. O primeiro ataque acontece no dia 16. Neste caso um drone Turco bombardeou um carro no meio da cidade de Shengal, no meio do mercado, e matou duas pessoas: uma delas comandante das YBŞ (Unidades de Resistência de Shengal) e ferindo mais uma que foi transferida para o hospital desta cidade.
No dia seguinte, a Turquia bombardeia um hospital na mesma região, destruindo-o e matando dezenas de pessoas, entre pessoal médico e utentes que ali se encontravam na altura. Após o ataque, as forças de segurança tiveram que bloquear durante algum tempo a passagem de pessoas que procuravam em massa chegar ao local do ataque para oferecer ajuda, pois aviões e drones continuavam no ar à espera que uma multidão se formasse para realizar outro ataque. O povo Yazidi sofreu um genocídio em 2014 às mãos do Estado Islâmico (EI), algo que internacionalmente recebeu grande atenção por parte dos meios de comunicação. Após a resistência deste povo, que levou à derrota do EI, o estado Turco toma agora o papel do EI e continua o massacre ao povo Yazidi e a destruição da autonomia que este povo construiu nos últimos anos.
Desta vez temos o estado fascista Turco a ter o papel de genocida ao contrário de 2014. Para além disto temos também a diferença de que agora assistimos a um silêncio ensurdecedor por parte dos media internacionais.
Nos dias que se seguiram vimos em Rojava uma onda de ataques de drones e artilharia que tiveram diferentes alvos. Para nomear alguns, em Til Temir a 19 de Agosto, um ataque de drone bombardeia o centro de media do Concelho Militar da cidade, acabando por martirizar quatro hevals. Outros dois ataques aconteceram na região de Qamishlo, e outros aconteceram no cantão de Kobanê, na região de Ain Issa, Til Temir e Manbiji. Estes ataques continuam até ao dia de hoje.
Temos de entender que a guerra em Rojava nunca parou desde as últimas invasões. O que a região enfrenta é o que podemos chamar de “guerra de baixa intensidade” em que todos os dias a Turquia, juntamente com os seus mercenários jihadistas, mata civis e combatentes das forças de defesa de Rojava. Esta guerra consiste na intensificação de ataques de drones que têm alvos específicos, como se pode assistir nas linhas da frente de Til Temir, Ain Issa, Manbiji, Afrin e Shebba. Nestas regiões assistimos a constantes ataques de artilharia que têm como alvo as forças democráticas mas também, acima de tudo, a população civil. Há apenas um mês atrás, uma família inteira foi morta por um destes bombardeamentos de artilharia. Tentativas de infiltração por parte dos mercenários jihadistas fazem parte deste tipo de guerra, que tem também como objetivo criar medo e tensão na sociedade. No entanto, a resistência tem sido enorme como se pode ver pela incapacidade de avançar e ocupar mais territórios. Os povos de Rojava e do Nordeste da Síria enfrentam também aquilo a que chamamos de “guerra especial”. O exemplo claro e que tem grande impacto na região é o uso por parte do estado Turco da água como uma arma. O rio Eufrates, o maior rio que corre em território Sírio, tem a sua nascente em território Turco (Curdistão ocupado). O que o estado Turco tem feito nos últimos anos é investir na construção de barragens através das quais retira lucro da electricidade gerada (explorando recursos naturais do Curdistão ocupado pela Turquia) e controlar o fluxo de água que segue para território Sírio. Todos os verões, em Rojava e no Nordeste da Síria, o acesso à água para as necessidades básicas se torna bastante difícil. Nestes últimos tempos a situação tornou-se mais grave com a presença do vírus Covid-19, em que a higiene joga um papel central na prevenção. Para além deste tipo de guerra especial existe também a queima dos campos de trigo da região por células clandestinas de jhiadistas, quer do Daesh (Estado Islâmico), quer de outros grupos, todos eles financiados e organizados pelos serviços secretos turcos. Este ano, a região enfrenta grandes dificuldades na produção de pão devido a estas ações de sabotagem.
Bashur e Bakur (Sul e Norte do Curdistão)
A guerrilha do PKK, através das suas forças – as HPG (Unidades de Defesa do Povo) e as YJA-Star (Unidades de Mulheres Livres – Star), tem levado a cabo uma resistência armada ao estado Turco há já 37 anos. Durante estas três décadas, o segundo maior exército da NATO não conseguiu sair vitorioso, apesar de, já por várias vezes, ter anunciado a sua vitória sobre a guerrilha.
Ao longo deste tempo temos visto o estado Turco a levar a cabo diversas operações em grande escala para combater a guerrilha, quer seja dentro das suas fronteiras quer fora delas, como é o caso dos constantes ataques no Norte do Iraque, através de bases militares Turcas neste território, numa clara violação da soberania das fronteiras do Iraque e numa demonstração das aspirações Neo-Otomanas de Erdogan.
No entanto, estas operações de larga escala têm-se revelado um completo fracasso do Estado Turco. No final do ano passado e início deste ano, a Turquia lançou uma operação que envolvia drones, aviões de guerra, forças especiais e outras tecnologias militares de um exército da NATO. Esta operação tinha como objetivo ocupar uma região no Norte do Iraque, Bashur, controlada pela guerrilha: Garê. A campanha iniciou-se mas, após quatro dias de intensos combates e de um alto número de baixas no exército Turco, este declarou o fim da campanha e retirou-se fracassado.
Após a campanha fracassada em Garê, a 23 de Abril deste ano a Turquia inicia uma operação em três regiões sob controlo da guerrilha: Avaşin, Metina e Zap. Esta operação dura até aos dias de hoje, com um número impressionante de baixas do lado do regime turco. No final de Julho, um balanço da guerra mostrou que 494 ocupantes tinham sido mortos, e que 63 guerrilheiras tinham caído mártires. Um balanço feito pela guerrilha em Setembro reportou 157 ataques do Estado Turco com armas químicas. Estes ataques químicos por parte da Turquia têm sido largamente registados e reportados, quer pela guerrilha nas montanhas mas também pelos povos de Rojava, Shengal e Bashur, criando-se campanhas para fornecer máscaras de gás à guerrilha. Apesar disso, os media internacionais, assim como organizações como a ONU, decidem manter-se em silêncio, legitimando o uso destas armas pelo seu aliado Turco.
O papel do KDP como traidor do povo curdo
É claro que o Estado Turco se encontra em dificuldades para levar esta guerra em frente de uma forma bem sucedida. Isto deve-se, acima de tudo, ao facto de a guerrilha curda ter tido, nos últimos anos, refletido acerca da sua tática e da sua organização, e iniciado um processo de modernização e de profissionalização. Isto significa que a guerrilha é, neste momento, capaz de enfrentar um exército tão poderoso como é o exército Turco, devido à sua adaptação às condições atuais da guerra e a uma utilização de ferramentas e conhecimentos de forma mais eficaz e produtiva.
Levando em conta este fator no conflito, o estado fascista Turco intensificou a sua pressão sobre o KDP (Partido Democrático do Curdistão) e sobre as suas forças, as Peshmerga, para uma escalada na tensão entre estas e a guerrilha, no sentido de provocar uma guerra entre curdos. O KDP, partido do clã da família Barzani, tem desde sempre desempenhado o papel de traidor ao povo curdo ao colaborar regionalmente com o estado Turco, quer de forma económica, quer militar. Nos últimos meses, as tensões entre os Peshmerga e a guerrilha aumentaram bastante, com emboscadas feitas por parte dos Peshmerga à guerrilha e assassinatos de membros do PKK. Até aos dias de hoje, a guerrilha não tem dado uma resposta armada a estes ataques do KDP, consciente de que é isso que o inimigo quer. No entanto, a situação continua a escalar e o povo do Curdistão decidirá qual a resposta a dar aos ataques dos traidores.
Previsões: Rojava e Montanhas Livres – uma só luta, um só movimento
As vitórias nas montanhas livres são as vitórias de Rojava, e vice-versa. A resistência levada a cabo pelas guerrilheiras nas montanhas é a mesma que se vê em Rojava. Por isso, os acontecimentos nas montanhas afetam o que acontece em Rojava e em todo o Curdistão. As tensões entre a guerrilha e o KDP estão neste momento a influenciar Rojava, que já afirmou que se um conflito entre estas duas forças acontecer, Rojava tomará uma posição clara, que será a posição decidida pelos povos.
A guerra nas montanhas continua, com o estado Turco, apoiado pela NATO e outros estados ocidentais, a usar toda a sua força para derrotar a guerrilha. A resistência na região de Avaşin é no mínimo inspiradora. Em meses de operação, o inimigo não consegue tomar um pico de uma montanha, Werxele. O inimigo não consegue entrar nos vales das montanhas livres. O outono aproxima-se e o estado Turco está consciente de que se até ao Inverno não for capaz de controlar estes pontos estratégicos terá de se retirar devido às condições difíceis das montanhas curdas.
Podemos esperar com toda a certeza, neste Outono, uma escalada do conflito. A 9 de Outubro será o aniversário da prisão de Abdullah Öcalan, líder ideológico e do movimento de libertação curdo. Nesta data, o estado Turco realiza sempre grandes ações. Em 2019 iniciou a operação de ocupação a Rojava na região de Serekaniye, e em 2020 realizou-se o acordo entre Erbil e Baghdad para tomar de novo controlo da região de Shengal sob auto-administração do povo Yazidi. Este ano, de certeza, não será diferente.
Solidariedade, responsabilidade e luta internacionalista
A revolução no Curdistão é uma revolução única e que não luta apenas pela liberdade do povo curdo, mas também pela liberdade de todos os povos do Médio Oriente e do mundo. As ideias por trás deste movimento dão-nos esperança para as lutas nos nossos territórios. Acima de tudo, as propostas e a prática que esta revolução tem mostrado nas últimas décadas são uma clara solução para o conflito em que se encontra o Médio Oriente. Não somos só nós que estamos conscientes disto, mas também o inimigo. As forças imperialistas e as potências regionais sabem que este movimento é capaz de travar os seus interesses e os seus projetos colonialistas. Por isso, vemos no conflito de hoje um enorme esforço de erradicar a revolução Curda. A Turquia tem sido o ator regional a tomar maior responsabilidade nesta tarefa. No ano de 2021, o conflito tem alcançado níveis nunca antes vistos, ainda que com pouco sucesso.
O fascismo Turco está sob enorme pressão e numa situação complicada e sem saída. Em 37 anos, o estado Turco não conseguiu derrotar a guerrilha nas montanhas curdas. O estado Turco encontra resistência, não só nas montanhas, mas também nas metrópoles Turcas e Curdas, com ações de sabotagem a colaboradores do regime fascista. As inúmeras aventuras Neo-Otomanas além-fronteiras têm-se mostrado um completo fracasso do Estado Turco, como foi o envolvimento no conflito Arménia-Azerbeijão, Líbia, Síria, Iraque, Grécia ou Mediterrâneo. Tudo isto faz parte de uma grave crise política e económica que implica a queda de popularidade do regime de Erdogan entre a população turca.
Desde o seu nascimento que o fascismo Turco tem apenas um caminho: o da derrota. Neste momento, encontramo-nos num momento histórico em que podemos ver essa derrota bem de perto. Mas não podemos apenas esperar que essa derrota chegue por si. Temos de seguir o exemplo da guerrilha nas montanhas e desenvolver a nossa luta, pondo em prática uma resistência brutal contra o fascismo. A luta contra o fascismo Turco não pode ser levada a cabo apenas pelos povos da região. A revolução no Curdistão é uma revolução internacional e portanto a resistência heróica das montanhas do Curdistão e das planícies de Rojava deve ser transportada para os nossos territórios. Um exemplo desta resistência internacional foi aquando da invasão de Serekaniye pelo regime Turco, em 2019. O plano inicial era ocupar todo o norte da Síria mas, devido a milhões de pessoas que sairam à rua no mundo inteiro, a ofensiva parou. Agora, é necessário voltar a sair às ruas para construir alternativas e para combater o fascismo nos nossos países, pois ele é o mesmo em todo o mundo.
FUENTE: Kendal Q / Jornal Mapa
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