Entrevista com um Internacionalista Português em Rojava

-Pode falar um pouco sobre si e o que te motivou a vir à Rojava? Que importância vê na vinda e participação de internacionalistas na Revolução?

-O meu nome é Jaime Correia e sou de Portugal. Desde à uns anos que me organizo em Portugal principalmente dentro do meio anarquista. O trabalho de solidariedade com a Revolução de Rojava e com o Movimento Curdo ocupou bastante da minha militância. A curiosidade e desejo de conhecer mais sobre o movimento revolucionário curdo serviu para que facilmente, após algum tempo, tomasse a decisão de viajar até Rojava. Muitas coisas motivaram-me para vir ao Curdistão entre elas está a necessidade de ter de ver a Revolução na prática, de ver as suas conquistas, de ver os seus obstáculos e as suas contradições. Em Portugal o conhecimento sobre o movimento curdo é escasso. Por isso quando tomei conhecimento que internacionalistas estavam também a participar ativamente na Revolução e que até vários tinham caído mártires, pareceu-me mais do que natural olhar para o exemplo da vida destes companheiros e de alguma forma seguir os seus passos. O exemplo do Mário Nunes, um jovem português que viajou para Rojava para combater o Estado Islâmico e defender os povos de Rojava e que mais tarde caiu Sheid, teve um forte impacto na minha decisão de vir apoiar esta Revolução. Os nossos movimentos independentemente das suas ideias e abordagens sofrem de bastantes problemas. A falta de cultura militante, a influência do sistema e das ideias liberais e o distanciamento da sociedade em geral são alguns desses problemas. Por isso vir a Rojava foi de alguma forma uma maneira de encontrar este espírito de militância e compromisso para com a luta em mim mesmo e uma forma também de descobrir e pensar em métodos que possam contribuir para o desenvolvimento das lutas coletivas já existentes em Portugal ou ajudar a construir movimentos mais revolucionários. Existe um grande significado na vinda de internacionalistas a Rojava no sentido de que Rojava é um lugar onde militantes de vários movimentos revolucionários podem vir aprender sobre como a sociedade se está a organizar, como podem ultrapassar os seus problemas e dai repensar os seus próprios movimentos no sentido de os desenvolver. É também um lugar que deve servir de “lugar seguro” para revolucionários de todo o mundo se encontrarem e partilharem experiências e conhecimentos entre si. Mas acima de tudo a participação direta de internacionalistas no movimento curdo deve servir para que todas as experiências que todos nós trazemos, todas as nossas críticas, todas as nossas ideias, possam servir para que esta Revolução continue a crescer e não se isole do resto de outras Revoluções e movimentos do mundo.

-Há quanto tempo está em Rojava e como foi sua relação com a sociedade? O que sentiu e notou de diferente da sociedade a qual estava inserido antes e vivia de forma cotidiana? Como é a relação entre as pessoas e entre camaradas em Rojava?

-Estou em Rojava à 1 ano. Uma das primeiras coisas quando chegamos a Rojava que aprendemos imediatamente são algumas “regras culturais” básicas. A forma como nos sentamos quando visitamos uma família, o não cruzar uma perna sobre a outra, o não andar descalço ou também aqueles tópicos que não deves falar com outras pessoas, especialmente do sexo oposto, em público. Tudo isto foi um grande choque para mim e algo que levei algum tempo a interiorizar. De alguma forma tem sido sempre um tópico em conflito comigo. O tempo aqui na Revolução e com o povo curdo mostra-nos a importância que é para cada um de nós conhecer a nossa cultura, história e sociedade. E em parte como internacionalista é preciso a um certo nível adaptarmos-nos às culturas e formas de nos relacionarmos nesta sociedade, no entanto não queremos esquecer e nos afastarmos completamente da nossa cultura e forma de nos relacionarmos. Chegar a Rojava sem ter conhecimento destes aspetos e sem qualquer conhecimento de como falar Curdo é claro que foram obstáculos para entender a sociedade no inicio. No entanto assim que todos estes obstáculos inicias são de alguma forma ultrapassados ou solucionados torna-se mais fácil entender a sociedade. Acho que como em todos os territórios do mundo não existe um único tipo de sociedade, que pensa da mesma maneira, que age da mesma maneira ou que tem os mesmo sonhos para o futuro. Aqui em Rojava passa-se o mesmo. Existe uma sociedade que naturalmente não tem os mesmos objetivos e sonhos, há uma parte da sociedade que sonha com viajar para o estrangeiro e não liga muito ao processo revolucionário a acontecer no seu território. E claro que isto é compreensível a um certo ponto. Vive-se uma guerra de 10 anos e antes disso décadas de repressão fascista e condições de vida que ninguém deseja. No entanto a força desta sociedade face às condições da vida, aos desafios da guerra, face aos desafios do tradicionalismo e conservadorismo que resiste à mudança, continua a insistir em lutar, de diferentes formas e com diferentes objetivos mas sem nunca parecer desistir. Na sociedade podemos ver o nível de hospitalidade, em que ao ires a uma loja ou família podes ficar retido lá para beber um chá e trocar umas palavras de conversa. Famílias que visitamos que são capazes de ter uma mão cheia de mártires. Mães que perderam filhas e filhos e que apesar disso parecem transformar o seu sofrimento numa energia para continuar a construir o que está a ser construido nesta sociedade, a desafiar sistemas opressivos, a desafiar todo o tipo de agressões.É realmente algo que te impacta.

A relação entre as pessoas aqui, incluindo entre companheiros e companheiras, é também algo que teve algum impacto em mim. A vida na Europa e no sistema capitalista em geral é uma vida dentro de um sistema que não tem interesse em que as relações entre as pessoas sejam próximas e afins à entreajuda e solidariedade. Isto acho que é fácil qualquer um de nós ver a sua verdade se refletirmos nas nossas relações com a sociedade. Dentro dos círculos de esquerda, entre militantes, estes efeitos do sistema em que todos nós vivemos é também bastante sentido e pode ser a causa para muitos problemas que enfrentamos. Aqui em Rojava as relações entre as pessoas acaba por ser de alguma forma muito próxima. As famílias, sendo maioritariamente famílias com muitos membros, vivem juntas e por isso as suas relações são muito próximas. É normal portanto que se cresces num meio familiar em que há uma grande importância nas fortes relações que mais tarde na sociedade consigamos ver o efeito estes valores têm. Com os hevals em geral isto também é bastante visível. Para dar um exemplo particular, com os hevals que ficaram feridos durante a guerra podemos ver isto muito bem. Podemos ver como de uma forma natural e de plena camaradagem se ajudam uns aos outros. Em que se um companheiro está a passar um momento complicado, por ter dor, devido a má memórias da guerra, é certo que mais do que um companheiro vão estar à sua volta para o apoiar. Entre companheiros, ajudamos uns aos outros. Sabemos que estamos todos aqui para o mesmo e tentamos ajudar uns aos outros, criticando, discutindo, rindo, partilhando, aprendendo e ensinando.

-Que trabalhos desempenhou? Como foi sua experiência e aprendizados com estes trabalhos?

-Em Rojava existem vários trabalhos que internacionalistas fazem. No tempo que passei cá estive trabalhando em trabalhos relacionados com as estruturas da saúde. O nosso trabalho era dar formações de primeiros socorros, em particular às forcas de defesa da região. Essas formações focavam-se em primeiros socorros para situações de guerra, para hevals que são feridos em combate e que sejam capazes de realizarem uma primeira intervenção a si próprios ou a outra pessoa que tenha sido ferida antes de ir para um hospital. Muitos companheiros e companheiras durante esta Revolução infelizmente acabaram por cair sheids devido a ferimentos que de alguma forma podiam ter sido controlados até chegar-se a um hospital, no entanto estes conhecimentos eram e são algo que ainda não está muito presente nas forças de defesa. Por isso este trabalho tratava-se de alguma forma generalizar este conhecimento em primeiros socorros nas forças e de alguma forma fazer delas mais autónomas no que diz respeito a esta área. Foi um trabalho muito interessante, não só como um lugar onde aprendi muito em termos de conhecimento em primeiros socorros mas especialmente para entender a situação atual no Nordeste da Síria nas estruturas da saúde.

É uma área que vê constantes dificuldades devido ao embargo nas fronteiras, onde o acesso a medicamentos e material para os hospitais é de difícil acesso e a constante guerra e danos que esta produz em termos de infraestruturas. Outro problema é a falta de pessoal médico. Como um grande número da população, muitos médicos também emigraram para outros países fugindo das difíceis condições da guerra. O Crescente Vermelho Curdo torna-se uma organização, que apesar de não ser reconhecido oficialmente pelo Crescente/Cruz Vermelha Internacional, essencial para a estabilidade e desenvolvimento do sistema de saúde no Nordeste da Síria. Mas nem tudo é negativo. Nos últimos anos uma grande atenção foi posta no sistema de saúde, e novos Hospitais foram construidos e os já existentes melhorados. Recentemente acabou o primeiro curso de enfermeiros em Rojava, formando assim os e as primeiras enfermeiras a aprenderem medicina em Rojava.

-Como pôde perceber o paradigma de Rêbertî em sua prática, em especial a luta revolucionária das mulheres e a construção de uma outra mentalidade?

-Sem dúvida alguma que ter a oportunidade de viver durante algum tempo entre o Movimento Curdo dá para entender de uma forma mais clara o novo paradigma que foi desenvolvido por Ocalan e as ideias ou as abordagens deste movimento revolucionário. Antes de aqui ter vindo o contacto que tinha com o movimento era pouco e o que eu aprendia sobre esta revolução e as ideias desenvolvidas por Ocalan eram apenas através de livros ou discussões com outros companheiros. Aqui em Rojava tive a oportunidade de ver como é que estas ideias, este novo paradigma é posto de facto em prática. E claro, há ainda muito trabalho a fazer, pois este paradigma, na prática ainda não é tão difundido em toda a sociedade. No final de contas é natural pois trata-se de um processo e nenhuma sociedade é capaz de se mudar num curto espaço de tempo. No entanto os desenvolvimentos, devido a este novo paradigma do movimento curdo, são bastante notáveis sem dúvida. Na sociedade, antigas normas, formas de governo, de ver a cultura, de como se relacionar estão sendo postas em causa e alternativas construidas. O papel das mulheres e a sua luta é talvez onde dá para ver os maiores avanços nesta revolução. Não há nenhuma estrutura revolucionária onde a mulher não tenha um papel de destaque e o seu espaço autónomo. Numa sociedade com valores muito conservadores e patriarcais são enormes as conquistas que as mulheres aqui conseguiram alcançar em apenas 10 anos de Revolução. Antes seria impensável numa família teres a mulher na família a ter um emprego ou a estudarem ou a terem as suas próprias estruras autónomas de defesa, de justiça, cooperativas e mais. O movimento de mulheres enfrenta claro ainda grandes desafios na sociedade e dentro do próprio movimento revolucionário. As mentalidades patriarcais e opressoras que continuam a existir ainda na sociedade e no movimento são obstáculos claros ao desenvolvimento de qualquer movimento revolucionário. Por isso há uma enorme concentração do movimento de mulheres e do movimento revolucionário em geral no tópico da mudança da mentalidade, do “matar o homem-dominante”, e de construir uma personalidade revolucionária. Por isso, há ainda muitos obstáculos para que realmente o paradigma seja posto na prática da vida diária da sociedade assim como da dos militantes deste movimento. Muitos destes obstáculos colocam realmente a vontade revolucionária de qualquer um sob teste, mas a determinação que vi dos hevals é grande.

-O que mais te afetou e influenciou nesse período que aqui está? Gostaria de dizer algo mais?

-Sem dúvida o que me afetou mais desde que aqui estou em Rojava é a dedicação dos hevals e em especial da sociedade. Apesar de tantas derrotas e obstáculos, apesar de tantos companheiros e companheiras terem morrido a defender esta sociedade, apesar de tudo isto é impressionante a energia que estes povos são capazes ainda de encontrar para continuar. Para quem vem de um ambiente na Europa onde está muito presente uma falta de esperança na mudança, na revolução, o espírito desta sociedade dá nada mais do que uma nova energia para continuarmos a lutar. Sem dúvida que vir a Rojava é uma experiência que se revolucionários e movimentos por todo o mundo tiverem a oportunidade de ter devem tentar a realizar. No entanto, acredito que é crucial procurarmos também uma nova energia e esperança também nos nossos movimentos e nas nossas lutas dos nossos territórios. Intensificarmos a nossa luta nos nossos territórios é uma das melhores formas de internacionalismo e de solidariedade para com movimentos revolucionários como o do Curdistão, de Chiapas ou de qualquer parte do mundo.

FUENTE: Revolução no Curdistão

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